Um pouco de Gisele Abrahão

Entrevista concedida à Marie Claire em 04 de julho de 2011:

“Aos 21 anos, me formei na faculdade de propaganda e marketing em São Paulo. Tinha um bom emprego como trainee em uma multinacional e namorava firme um francês, o Charles, havia três anos. Ele recebeu uma oferta de trabalho nos Estados Unidos e me chamou para ir junto. Topei na hora. Achei que era uma boa oportunidade de melhorar meu inglês, que não tinha fluência, e fazer um MBA. Cheguei a Washington em outubro de 2000, quando as temperaturas estavam caindo. A adaptação foi difícil — mal nos instalamos, e o Charles teve uma hérnia na coluna que o impedia de andar. Ele teve de ir para a França fazer uma cirurgia e passou um tempo na casa dos pais para se cuidar. Fiquei os três primeiros meses sozinha. Enfrentar o frio foi complicado, chorei algumas vezes porque meus ossos doíam. Mas o mais difícil mesmo era estar só e sem conseguir me comunicar, já que meu inglês era ruim. Foram dias tristes, mas não pensei em voltar. Não sairia de lá sem meu MBA. Nesse início, passei muito tempo em casa e, para praticar a língua, ficava conversando com os atendentes de telemarketing que ligavam para lá.

O Charles voltou da França em fevereiro do ano seguinte, ainda com problemas de saúde. Não andava direito e não podia dirigir. Para ele, que foi campeão de jiu-jítsu, essa condição era complicada, e o humor dele só piorava. Isso, somado a todas as outras dificuldades de adaptação, acabou interferindo em nosso namoro. Em abril, comecei meu MBA e, algumas semanas depois do início das aulas, fui morar com uma amiga americana da faculdade. Conheci os amigos dela e assim comecei a formar minha turma por lá. No entanto, Charles e eu não chegamos a romper definitivamente.

Logo em seguida, vieram os ataques de 11 de setembro. Estava dormindo quando tudo aconteceu. Acordei com um telefonema desesperado da minha mãe, mas a conversa foi interrompida pelo corte nas linhas telefônicas. Entrei em pânico — não conseguia avisar ninguém de que estava bem, nem falar com a minha melhor amiga brasileira, que estava em Nova York naquela manhã. Vi o Pentágono pegando fogo pela janela de casa. Foi um momento impressionante, angustiante e muito triste.

Nessa época, queria arrumar um emprego na minha área. Fui ao escritório que dá suportes a estudantes brasileiros nos EUA pedir uma orientação. A moça que me atendeu comentou que tinha uma amiga na embaixada da Jordânia que poderia me ajudar. Conversei com ela e acabei sendo indicada a um escritório de turismo ligado à embaixada do país. O pessoal dessa agência gostou de mim e criou uma vaga como estagiária de marketing e comunicação para que eu ficasse com eles. Sem me dar conta de que iria trabalhar para um país muçulmano logo após o 11 de setembro, topei na hora.

Foi um desafio. Imagine uma brasileira, expansiva, trabalhando para um país muçulmano nos EUA nessa condição extremamente adversa. Era difícil, ninguém queria saber da gente. Eu tinha de fazer pesquisa de mercado sobre a Jordânia e as pessoas riam quando eu perguntava o que achavam do país. Quando terminei o MBA, no final de 2002, estava decidida a voltar para o Brasil. Meu namoro com o Charles definhava, sempre fui muito próxima da minha família e me deu vontade de recomeçar no meu país, mas ninguém gostou dessa minha ideia no escritório. Além de gostarem do meu trabalho, para eles era bom ter na equipe alguém de cultura tão diferente. Pediram que eu ficasse mais um ano. Acabei ficando oito.  

A ignorância e o medo que pairavam nos Estados Unidos em relação aos muçulmanos começaram a se dissipar com a Guerra do Iraque. Muitos americanos ficaram curiosos para saber o que de fato acontecia naquele pedaço de mundo. Além disso, a imagem do rei Abdullah II e da rainha Rania sempre foi muito boa e isso ajudou a Jordânia, um país lindíssimo, um verdadeiro oásis no Oriente Médio. O escritório deslanchou.

Em pouco tempo, assumi o departamento de comunicação e passei a viajar pelo mundo inteiro a trabalho. Ganhava bem, morava sozinha em um apartamento bacana, tinha carro, visto diplomático (o que me isentava de pagar qualquer imposto fosse no Brasil, na Jordânia ou nos EUA), escolhia em que lugar do planeta passaria o próximo feriado, jantava nos melhores restaurantes. Sabe vida de luxo? Era a minha. Entre 2005 e 2007, cheguei a passar somente 40 dias por ano no meu apartamento em Washington. Conheço mais de 50 países.

Charles e eu terminamos para valer em 2005, depois de nove anos juntos. Solteira e em meio a tantas viagens, eu me apaixonava toda noite. Muita gente ficava maravilhada com a minha vida, e ela era realmente muito boa. Ao mesmo tempo, trabalhar tão intensamente me fez perder momentos importantes, felizes e tristes, da vida de várias pessoas de quem gosto. Não vi o casamento de muitas amigas e até hoje não me perdoei por não estar com a minha mãe quando meu avô, pai dela, morreu.

Na famosa crise dos 30, comecei a repensar esse meu ritmo. Estava angustiada, sabia que era preciso mudar, mas não sabia exatamente como, ou o que estava faltando. Em janeiro de 2009, fui para Nova York acompanhar uma palestra da rainha Rania sobre seus trabalhos voluntários. Minha ficha caiu durante esse evento: o que me faltava era fazer algo pelos outros. Decidi então que faria voluntariado, mas não sabia para onde iria. Escrevi uma lista com meus principais medos e vontades. Sempre tive pavor de aids e enorme curiosidade em entender mais sobre suas consequências psicológicas. Também sinto medo de qualquer tipo de animal e queria conhecer a África, um continente que havia explorado pouco (até então só tinha ido à África do Sul). Outro de meus objetivos era experimentar a vida com dinheiro contado. Ao me deparar com essa lista de medos, resolvi viajar pela África por seis meses. Embarquei em fevereiro de 2009.

O pastor que administra a escola me recebeu no aeroporto em Uganda, já tarde da noite. Morri de nervoso quando cheguei a essa vila. A casa dele, onde eu ficaria hospedada, era a única feita de tijolos. O banheiro era um espaço com um buraco cavado no chão. Chuveiro, nem pensar. O banho tinha de ser de canequinha. A comida ficava toda empilhada em um canto com muitas moscas, não havia geladeira. O fogão era uma lata com carvão e madeira. Lá, moravam o pastor, sua mulher e um filho.

Nos documentos mandados pela fundação a mim, quando ainda estava nos EUA, eles deixavam claro que asseguravam as necessidades básicas dos voluntários. Mas não foi o que aconteceu. Além disso, o pastor, que seria meu parceiro durante esse desafio, foi se revelando cada vez mais passivo, alheio ao empenho gigantesco que é necessário para transformar a vida de uma comunidade tão sofrida.

Katebo é uma vila formada por 400 pessoas, 95% delas com aids. Via gente morrendo no meio da rua, à luz do dia. Os alimentos chegam a eles por meio de trocas. No sábado e na quarta-feira, essas pessoas reúnem-se com gente vinda de vilarejos próximos e trocam bananas e outras frutas, tiradas de plantações, por vacas, galinhas e bois trazidos pela população de fora.

A escola, única da vila, era um caos. Os banheiros, também espaços com buracos cavados no chão, eram imundos. Era óbvio que aquelas crianças precisavam, antes de aprender inglês, geografia ou matemática, de um mínimo de higiene. Elas comiam com as mãos, no mesmo lugar onde tinham aulas. Minha primeira providência foi comprar talheres e organizar um mutirão para limpar esses banheiros. Coloquei neles baldes com torneirinhas para que as crianças lavassem as mãos — uma mudança enorme na rotina.

Fui muito bem-recebida pela comunidade, ganhei carinhosamente o apelido de Madame Gi, mas isso não facilitou muito. Ainda que não entendessem muito bem o que eu propunha (afinal, eles não conhecem a vida fora daquele lugar — não sabiam que comer com as mãos sujas significa um risco), os moradores gostavam das minhas sugestões. No entanto, poucos se comprometiam. Cheguei a comprar material de construção para pequenas reformas, como a criação de um refeitório e de uma biblioteca. Mas os pedreiros, gente da própria comunidade, não iam trabalhar, cada hora com uma desculpa. Um dia era porque chovia. No outro, porque fazia sol. No seguinte, porque tinham de tomar um coquetel contra a aids.

Eles não têm perspectiva de vida e por isso qualquer esforço às vezes parece inútil. Eu entendia isso, mas não me conformava. Queria que cuidassem mais do entorno e de si, também como forma de prolongar a vida — não era certo que todos morreriam, as crianças tinham direito a ter esperança. A minha visão romantizada sobre o que era o trabalho voluntário foi sendo desconstruída dia a dia. Não bastavam meus recursos e minha vontade. Eles tinham seu próprio tempo e seus limites, e cabe ao voluntário entender e priorizar suas ideias de acordo com a realidade deles.

Conseguia ver resultados e, apesar de considerá-los pouco perto do que sabia ser possível, entendia que já era muito mais do que tinham antes de eu chegar. Levei muitos deles a médicos para tratar doenças, as crianças comiam melhor, a cultura da higiene pouco a pouco ia ganhando força e um terreno enorme começava a ser usado como plantação para outros tipos de alimentos, o que tornaria a comunidade mais sustentável. Queria que eles entendessem a diferença entre ser sustentável e depender de caridade.

O mais tocante era ver que estava criando sonhos em algumas crianças, a maior parte delas órfãs de pai e mãe. Quando dizia a elas, nas aulas de Geografia, que o mundo ia além de Katebo, seus olhinhos brilhavam. Quando faziam aula de música com instrumentos que improvisei, idem. Era isso o que me mantinha firme no meu objetivo. Não era fácil lidar com a frustração e com as condições péssimas em que eu me encontrava. Minhas refeições eram biscoitos. Tomava banho de caneca todos os dias e não usava aqueles buracos que eles chamam de banheiro de jeito nenhum. Fazia xixi só no mato e meu intestino ficou travado durante todo o tempo em que fiquei na vila. Ao fim dos dois meses, já não aguentava mais ficar em Katebo, me sentia muito debilitada. Por um milagre não peguei nenhuma doença.

Meu último dia lá foi outro choque. Enquanto me despedia de todos, percebi que o grupo de crianças ao qual era mais apegada me ignorava. Pedi para falar com a Carol, uma espécie de líder deles. Ela me explicou o que estava acontecendo: “Todo mundo que a gente ama nos abandona, você é igualzinha”. E virou as costas. Eu desabei a chorar. Talvez tenha sido ingenuidade, mas não cheguei a pensar que o carinho que estava dando a essas crianças, tão marcadas pelo sentimento de abandono, também poderia machucá-las. Expliquei que minha função ali era essa, passar apenas um período ajudando-os, mas que o amor que tinha nascido continuaria a existir em qualquer lugar que eu estivesse. Ela se acalmou e me fez prometer que eu pensaria sempre nela. Isso mexeu muito comigo.

Segui minha viagem pela África na caçamba de um caminhão, dessa vez, fazendo só turismo. A ideia era explorar outros países, conhecer outras comunidades e fazer safári. Nessas andanças, vivi um momento Liz Gilbert, a escritora do livro Comer, rezar e amar. Já em Uganda, percebi que a cultura africana, de uma maneira geral, é muito machista. Por volta dos 17 anos, a mulher está casada e com filho. Aos olhos deles, eu era mais doente do que alguém com aids, pois não entendiam como era possível uma mulher de 31 anos não ser casada e não ter filhos. Eu só podia ter algum problema gravíssimo, algo de muito errado. Não era maltratada nem hostilizada por conta disso, mas percebia um enorme espanto quando revelava minha condição. Eu podia mentir, mas não queria. Casar e ter filhos, naquele momento, não era uma questão que me preocupava. No entanto, depois de um tempo, o julgamento começou a me incomodar e cheguei a pensar que eles pudessem estar certos.

Fiquei introspectiva alguns dias, digerindo isso, mas concluí que não havia nenhum problema comigo. Eu estava era bem feliz com a minha vida, fazendo uma viagem incrível, aprendendo muito. Dificilmente eu teria essa experiência se fosse casada e tivesse filho. Teria outras — mas o que me interessava naquele momento era exatamente o que estava vivendo.

Na Tanzânia, parei em uma feira de artesanato. Puxei assunto com uma mulher chamada Lua e a primeira pergunta que me fez foi: “Onde estão seu marido e filhos?”. Disse que não os tinha, e a reação foi a mesma das outras pessoas. Mudei de assunto e pedi a ela que me ensinasse a dançar daquele jeito que só os africanos sabem, mexendo todo o corpo. Ela resistiu. Chamei um monte de homens africanos que estavam na feira e fiz o pedido a eles. Começamos a cantar e a dançar no meio de uma praça. Foi uma cena engraçadíssima. Quando a dança terminou, Lua disse que nunca tinha visto os olhos de uma pessoa transparecendo tanta felicidade quanto os meus e perguntou como isso era possível.

Expliquei que eu era realmente feliz, pois poucas pessoas tinham o privilégio de estar naquela hora dançando no meio de uma praça na Tanzânia. Ela rebateu: “Mas como? Você não tem marido nem filho”. Aí eu não aguentei. Contei a ela toda a história da minha vida, minha sede por aprender e conhecer novas coisas sempre, e disse que queria, sim, me casar, mas só se fosse com um homem incrível, numa relação linda. Insisti que ela estava vendo nitidamente que eu era feliz, apesar de solteira.

Ela ficou emocionada e me pediu mil desculpas por ter me julgado. E continuou: “Minha filha hoje tem sete anos. Quando ela fizer 15, a sociedade vai começar a pressioná-la para casar. Eu lhe prometo que quando ela chegar nessa idade contarei sua história e direi o quão feliz você é. E então ela vai ter como escolher entre a sua e a minha vida. Se minha filha tiver, em algum momento, o olhar que você tem, eu morro feliz”. Isso foi fantástico. Vi que tinha agregado algo à vida dela, à da filha e possivelmente à de outras mulheres próximas a elas. Ainda que elas continuassem seguindo a cartilha do casamento precoce, ao menos já não julgariam a próxima turista desacompanhada.

Findos meus seis meses na África e meu dinheiro, recebi propostas de trabalho para voltar aos EUA, mas não quis. Vim para o Brasil em agosto de 2009. Logo que cheguei, abri minha empresa de turismo, contatei a ministra do setor na Jordânia e o país acabou virando meu primeiro cliente. Em outubro, ainda recém-chegada, fui encontrar alguns amigos em um bar. Nessa noite, conheci um americano lindo, primo do marido da minha prima, que morava no Uruguai. A conversa fluiu e ficamos juntos. Obviamente, não queria me envolver, ainda mais porque ele morava em outro país. Mas a relação foi evoluindo rapidamente. Passamos o Natal aqui no Brasil com a minha família e o Réveillon em Punta del Este com a dele. No Carnaval de 2010, depois de quatro meses de namoro, ele me pediu em casamento — para os meus pais, de joelhos, da maneira mais tradicional possível. Em março, ele se mudou para São Paulo, e, em julho, nos casamos em Chicago, onde moram seus pais. Estou absolutamente feliz, encontrada e planejando a chegada de um filho.”

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